Começar a carreira literária com os dois pés na porta não é uma tarefa fácil, e nas publicações de língua inglesa é realmente satisfatório quando um autor cria uma obra de destaque frente a consagrados como Agatha Christie, Stephen King, Neil Gaiman (com a imagem em ruínas hoje em dia) e Gillian Flynn – ainda que sabiamente se inspire neles. Esse é o caso de Alex Michaelides (roteirista e psicólogo de formação) com seu livro de estreia, A paciente silenciosa, lançado no Brasil pela editora Record em 2019 com tradução de Clóvis Marques. Angariando diversos elogios de leitores e da crítica, o título alcançou diversos países vendendo, até 2023, uma quantidade estimada em seis milhões de exemplares.
A história acompanha Alicia Berenson, uma artista promissora com uma vida aparentemente perfeita ao lado do marido, até a noite em que ele foi encontrado morto com cinco tiros no rosto — e ela, coberta de sangue, mergulhou em um silêncio absoluto. Enquanto o mundo especula seus motivos, ela se recusa a falar uma única palavra, transformando-se em um mistério nacional. Anos depois, o psicoterapeuta forense Theo Faber se aproxima do caso, convencido de que pode fazer Alicia falar — mas à medida que mergulha no passado dela, começa a confrontar segredos que podem ser tão perigosos quanto reveladores.
Uma clínica em ruínas e uma premissa intrigante
A paciente silenciosa intriga desde a sua premissa: uma mulher que mata o marido e se mantém calada por anos a fio é algo pra lá de atípico na rotina de qualquer ser humano. Ela está assim por algum choque ou trauma? Está protegendo alguém ou de alguém? Essa questão inquietante é contrabalanceada com o narrador, Theo Faber, que nos conta em primeira pessoa sua impressões sobre o caso, junto a uma vontade imensa de salvar Alicia – sentimento pra lá de suspeito vindo de um profissional da saúde mental.
A obsessão é tamanha que Theo constantemente está investigando a vida de Alicia fora do hospital psiquiátrico no qual ela está detida, o Grove. A clínica, por sua vez, acaba fazendo vezes de personagem na trama por conta da especial atenção dada ao autor para o local: um prédio antigo composto por profissionais das mais variadas índoles, à beira de ser fechado por falta de recursos.
Porém (isso que vou falar não é um spoiler), Alicia não se mantém quieta o tempo todo, devido a inclusão de capítulos do seu diário ao longo da trama. Então, por mais que a Alicia do presente esteja muda, pílulas do como ela chegou a essa situação é oferecida aos leitores.
O silêncio como linguagem de A paciente silenciosa

Ainda que esteja construindo suas surpresas para impactar quem lê, a escrita de Michaelides é direta ao ponto, sem perder tempo com longas descrições e diálogos rebuscados. Os capítulos, por sua vez, são curtíssimos, facilitando a retenção da leitura compulsiva. Afinal, ler só mais um capítulo não irá tomar mais do que cinco minutos do seu tempo.
O silêncio de Alicia Berenson, instaurado logo após o assassinato do marido, não é apenas uma ausência de fala — é um gesto de resistência. Ao recusar-se a explicar o que aconteceu, Alicia transforma sua mudez em linguagem. Em vez de fornecer respostas, ela impõe um enigma, obrigando o leitor, e especialmente o terapeuta Theo, a preencher esse vazio com interpretações e projeções. Como recurso narrativo, o silêncio não apenas sustenta o suspense como estrutura o mistério da trama: tudo gira em torno do que não é dito.
Já como símbolo, ele opera em múltiplas camadas — representando tanto um trauma encapsulado quanto uma tentativa radical de preservar a própria verdade. Michaelides usa esse silêncio para tensionar os limites entre expressão e ocultamento, entre o visível e o indizível, fazendo dele o verdadeiro coração da narrativa. Junto a isso temos a tragédia grega (mais especificamente a de Eurípedes), na qual a última pintura de Alicia – uma representação de si mesma através do mito de Alceste – acaba permeando toda a história de A paciente silenciosa.
O leitor leigo nos temas como doenças mentais e mitologia grega não precisa temer: tudo que Michaelides insere na narrativa é absorvido de um modo que você não irá se sentir um ignorante, pois (sutilmente ou não) estará tudo explicado.
O limites da terapia e spoilers de A paciente silenciosa a seguir
No entanto, sendo você conhecedor ou não, fica evidente que Theo Faber está extrapolando os limites de um vínculo normal entre terapeuta e paciente e isso faz dele um narrador não confiável desde o início. Claro que você pode afirmar que sem isso não haveria interesse genuíno na obra, mas o melhor de tudo é que até essa característica possui uma motivação para além de um terapeuta em descontrole: no final, descobrimos que Theo possui forte envolvimento com os motivos de Alicia ter cometido o assassinato – e sua escolha profissional de trabalhar no Grove não se deu por um fascínio em Alicia, mas sim para tentar ajudá-la após o erro que ele mesmo cometeu.
Antes disso, porém, é curioso notar como o autor trabalha o poder dos relacionamentos na vida das pessoas. Os personagens de A paciente silenciosa são, quase em sua totalidade, pessoas quebradas e desassistidas em relação aos seus traumas e sentimentos em geral. Isso desperta diversas reflexões em quem lê, e mesmo que no caso de Theo Faber haja uma clara falha de caráter, quem garante que sua vida e suas atitudes não seriam ainda piores caso ele não tivesse uma profissional como Ruth ao seu lado quando mais novo?
Afinal, vale a pena ler A paciente silenciosa?
Bebendo da fonte de grandes autores como Agatha Christie e Gillian Flynn (Garota Exemplar), mas também passando por ótimas referências cinematográficas como filmes de Alfred Hichcock chegando à obra/relato Garota Interrompida de Susanna Kaysen, A paciente silenciosa é daquelas obras que agradam 95% dos leitores pois acaba funcionando bem tanto no nível de leitura como entretenimento quanto como leitura reflexiva. Um elogiável debute para Alex Michaelides.