Um homem multitarefa, Enéias Tavares não somente um é escritor premiado, como também é roteirista, pesquisador e professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Conhecido por suas contribuições à literatura fantástica e especulativa brasileira, ele se destacou com a a publicação de “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison” e “Parthenon Místico“, este último finalista do Prêmio Jabuti e vencedor do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica. Além disso, Enéias é cocriador da série “A Todo Vapor!“, disponível no Prime Video, que expande o universo de sua série transmídia “Brasiliana Steampunk“.
Nos últimos anos, Enéias organizou edições especiais de clássicos da literatura fantástica para a DarkSide Books, como “A Máquina do Tempo”, “O Rei de Amarelo” e “O Retrato de Dorian Gray”. Em entrevista ao CosmoUp, Enéias Tavares não somente fala sobre Serpentes & Serafins, seu mais novo trabalho, disponível pela DarkSide, como compartilha insights sobre sua carreira, abordando desde suas influências literárias até os desafios de equilibrar múltiplos papéis na vida.
Cosmo: Enéias, é um prazer conversar contigo. Você já é uma figura carimbada no Cosmo, mas eu queria saber um pouco sobre a tua trajetória até aqui, especialmente agora com o lançamento de seu novo livro, “Serpentes & Serafins”.
Enéias Tavares – Digo o mesmo, Diego. Adoro o trabalho de todos vocês, sobretudo o modo como o CosmoNerd sempre consegue se reinventar, e para mim é sempre um prazer voltar. Para responder sua pergunta, creio que no meu caso as carreiras de escritor e de professor de literatura se misturam. Atuo na UFSM, no curso de Letras, há mais ou menos dez anos, exatamente o tempo de estrada da literatura publicada. Mas obviamente essa paixão por histórias e livros data da adolescência e até da infância, quando fui alfabetizado com a Bíblia – meus pais sempre foram muito religiosos – e histórias em quadrinhos. Assim, “Serpentes & Serafins”, sob certa ótica, é um retorno a essas origens: a sacralidade dos mitos antigos e clássicos e a ousadia e a irreverência das narrativas fantásticas.
Cosmo: Em “Parthenon Místico” e “Lição de Anatomia” você apresenta um Brasil retrofuturista nos termos do steampunk, mas agora, com “Serpentes & Serafins”, temos um romance contemporâneo. Essa história vinha sendo pensada há quanto tempo?
Enéias Tavares – Na verdade, assim como com “Lição de Anatomia”, esse novo projeto deriva de um conto bem mais antigo, produzido ainda em 2009, quando fiz a Oficina de Escrita Criativa com Luis Antonio de Assis Brasil na PUCRS. Eu morava em Porto Alegre na época, em meio ao doutorado, e o conto – na época intitulado “Anjos Caídos” – tratava de um assassino de aluguel encontrando um anjo em um voo para Berlim. Eu recuperei apenas a premissa desse conto em 2020, motivado por buscas e inquietações minhas naquele momento, em meio à pandemia e ao isolamento social, e ele cresceu, até se tornar um romance longo. Em suma, minha ideia para esse livro era produzir um tratado teológico disfarçado de ficção, com influências de Salman Rushdie, Anne Rice, Garth Ennis e Níkos Kazantzákis. Mas como em outros projetos, o resultado final é bem diferente e os leitores perceberão.

Cosmo: Em “Serpentes & Serafins”, acompanhamos Alex Dütres numa jornada mística e pessoal. De onde surgiu a inspiração para uma narrativa que combina temas de espiritualidade e fé, além de figuras como o anjo Barachiel e o demônio Samael?
Enéias Tavares – Anjos e demônios, santos e diabos, heróis e vilões, o bem e o mal. A nossa cultura é permeada de personagens que apontam a essas dicotomias. De saída, meu processo foi retirar meus personagens desses opostos antagônicos e morais. Barachiel e Samael não são o bem e o mal ou o mal e o bem, o que seria apenas inverter ou simplificar a lógica moralista vigente em nossa cultura – e aparentemente a lógica que está corroendo o cérebro das pessoas nesses dias de ódio político de direita e esquerda.
Não sei você, Diego, mas eu acho que a vida é um tantinho mais complexa do que as dicotomias. Dito isso, de saída escolhi posicionar os personagens de “Serpentes & Serafins” em espaços cinzentos e amorais de um modo que não fosse tão fácil apontar dedos ou tomar partidos. Alex é um herói com um crime hediondo em seu passado. Barachiel é um anjo que tem problemas sérios com Deus. Quanto a Samael, é um demônio cientista completamente apaixonado pelo mundo, pela natureza, pelo milagre da vida. Joana, que é minha personagem favorita no livro, é uma mulher cheia de complexidades existenciais e espirituais, sendo uma mulher muito prática e ao mesmo tempo permeada de fé. Assim, a trama é mais um experimento de investigação interior para esses heróis do que qualquer outra coisa. Eu queria que os leitores saíssem do livro olhando as coisas de diferentes perspectivas, inquirindo a si próprios sobre seus partidos celestes, infernais ou humanos.
Cosmo: Você define “Serpentes & Serafins” como um “roadmance” [eu não conhecia o termo!], que é um conceito muito interessante pois possibilita conectar cenários como Brasil e Europa. Como você trabalhou essa interação entre lugares e culturas tão distintas?
Enéias Tavares – Na verdade, “roadmance” foi um termo trazido pela editora do livro, a tradutora Marcia Heloisa, o que foi um grande acerto. Uma das influências para minha escrita é “Preacher”, de Garth Ennis e Steve Dillon, que é a seu modo um roadmovie “em busca de Deus”. No meu livro, porém, a ideia é menos um pé na estrada em que a aventura e a surpresa seriam centrais e mais uma viagem previamente definida.
Eu sabia que a história passearia por Rio e São Paulo, mas de saída me vieram cenários específicos, que tinham a ver com Berlim na Alemanha, com Sintra em Portugal e com Vicenza na Itália. São cenários artísticos e místicos específicos e minha ideia seria uma mistura de Umberto Eco com Dan Brown, levando os leitores por esses lugares e seus enigmas. Minha coluna no DarkBlog da DarkSide, “Na Estrada com Serpentes & Serafins”, foi uma ideia da mesma editora para detalhar aos leitores as referências dessa jornada por tempo, espaço e arte.

Cosmo: Adorei a escolha do Vassilios Bayiokos [com aquele tom gótico, cheio de brush] para as ilustrações. Como foi o processo de criação visual? Elas foram desenhadas com os personagens em mente ou as artes trouxeram novos elementos para a história?
Enéias Tavares – Foi o segundo caso. Buscamos um artista que já tivesse um portfólio definido e cujo estilo combinasse com o livro. Bayiokos trouxe uma coisa bem interessante, em diálogo com os arcanos do tarot, algo que não era bem meu objetivo nesse livro. Mas ele me fez perceber aspectos alegóricos e simbólicos nos personagens e em suas jornadas. Originalmente em cores, foi o trabalho dos designers da DarkSide trabalhar as artes de Vass para encaixar nas partes do livro, dando às seções uma paisagem, ou melhor, uma atmosfera de mistério, enigma e revelação. Além disso, Bayiokos é nova-iorquino, então foi uma diversão à parte termos um parceiro norte-americano em um projeto tão brasileiro e europeu.
Cosmo: Nos últimos anos, você organizou edições especiais de clássicos para a DarkSide, como “O Retrato de Dorian Gray”, “A Máquina do Tempo”, “O Rei de Amarelo” e “O Grande Deus Pã”. Como tu trabalha a organização de uma nova edição de clássicos? E qual a importância dos paratextos para contextualizar esses clássicos?
Enéias Tavares – Esses projetos para a DarkSide, em especial para o selo “Sociedade Secreta”, têm sido igualmente uma dádiva e um desafio. Uma dádiva porque vem ao encontro da minha atuação como pesquisador na pós-graduação da UFSM e leitor de obras em domínio público. Mas um desafio porque já temos muitas dessas edições no mercado. Então, a diversão de projetos como esse é pensar paratextos e extras que ofertem aos leitores diferenciais de leitura.
Assim, temos uma edição cheia de notas assinadas por Luiz Gasparelli Jr. no caso de “Dorian Gray”, contos inéditos de viagem temporal assinados por Felipe Castilho, Ana Rüsche, Braulio Tavares e Aline Valek, em “A Máquina do Tempo”, duas versões de “O Rei de Amarelo”, sendo uma de quadrinhos, na adaptação de INJ Culbard, e paratextos robustos do percurso de Pã da antiguidade ao presente na literatura e nas artes, falando do clássico de Arthur Machen. Por fim, todos têm introduções que convidam à leitura, num trabalho de mediação literária direta, que é minha visão do que um professor deve fazer em sala de aula: mediar e estimular seus alunos a mergulharem no aprendizado.

Cosmo: Além de escritor, você é professor, tradutor e consultor editorial, com uma série baseada no universo steampunk disponível na Amazon Prime, “A Todo Vapor!”, que você assina como roteirista. Como consegue equilibrar tantos papéis?
Enéias Tavares – Talvez essa seja a pergunta que eu mais escute nesses anos de carreira, Diego. A resposta tem a ver com uma única palavra: literatura. Acho que foi uma sorte de, em algum momento da minha adolescência, entender que queria trabalhar com livros e histórias. O que vem na sequência, e lá se vão duas décadas, é uma formação e uma atuação que orbita esse sonho, seja estudando, ensinando, traduzindo, escrevendo ou editando. Isso torna a sobrecarga de trabalho não menos leve, mas ao menos, mais conectada, uma vez que uma atividade ajuda na outra. Ler e estudar histórias ajuda a escrever. Ensinar ajuda a olhar para o público, o que auxilia na hora de pensar edições mais atrativas. Enfim, tudo faz parte de encarar o tempo menos como inimigo e oponente e mais como aliado e amigo.
Cosmo: Falando no tempo, você acaba de escrever sobre isso na sua newsletter, FAROL, que é um projeto super novo, não? O que poderia nos dizer sobre ela?
Enéias Tavares – Então, justamente por sempre receber perguntas sobre gestão do tempo, organização de projetos, processo criativo, etc, que nasceu FAROL, minha newsletter mensal sobre escrita, ideias e outros assuntos aleatórios envolvendo carreira, trabalho e ofício de artista. Aproveito para convidar você e os leitores do Cosmo a se inscreverem por lá. Minha ideia é estar mais próximo dos meus leitores, atualizando-os do que tenho feito, mas também compartilhando um pouco do muito que aprendi nesses anos de carreira.

Cosmo: A mudança para o interior do Rio Grande do Sul parece ter sido uma escolha importante para sua vida e carreira. Como esse ambiente tem impactado sua produção e rotina de trabalho?
Enéias Tavares – Atualmente moro em uma casa na zona rural, entre Santa Maria e Silveira Martins. Foi uma mudança planejada há alguns anos, uma vez que minha atuação profissional na UFSM já se dividia entre o campus sede e a unidade de Silveira. É lá que fica o ORC Studio, meu laboratório de escrita de ficção e ações transmídia. Então, foi um pouco de planejamento –encontrar um lugar entre as duas cidades –, um pouco de sorte – ao passar na beira da estrada por uma casa que estava à venda e convencer o proprietário das minhas condições longevas de pagamento – e um pouco de sonho – de morar numa casa, perto da terra e de um riacho, com grama, árvores e bichos por todo o lado, incluindo não só gatos, lagartos e ovelhas, como também cobras e morcegos. Então é meio que um aprendizado entre o pastoral romântico e idílico e o dionisíaco natural e selvagem, o que tem tudo a ver com o que escrevo.
Quanto à rotina, acordo com o sol para trabalhar na escrita, antes de sair para o trabalho em torno de dez da manhã, e paro tudo quando o sol se põe. É uma forma de ajustar o corpo ao relógio da natureza, ganhando com isso energia e calma, dádivas necessárias na vida ultra conectada e ultra nervosa que todos levamos hoje.
Cosmo: Enéias, agradeço muito por seu tempo e pela conversa. Para encerrar, você tem algum conselho para escritores que estão começando, especialmente os que se interessam por literatura fantástica e clássicos?
Enéias Tavares – Não tenham medo do espelho. Saibam o que vocês gostam, o que vocês não gostam e o que desejam para si em termos de rotina criativa e artística. Quanto à carreira, que é uma coisa completamente diferente da arte e da escrita, tenho pouco a dizer. Tudo é muito inconstante e desafiador em qualquer carreira nas artes. Por isso acho importante ter um plano bem tradicional de emprego, para pagar as contas. Livrar a cabeça das contas com um trabalho que talvez não tenha nada a ver com sua arte pode ser essencial à sua criação. Quanto ao resto, não tenha medo da aventura. Arte, ainda mais no Brasil, é um eterno pegar a estrada sem saber exatamente qual será seu destino. E sim, voltamos ao início da nossa conversa, pois “Serpentes & Serafins” é sobre isso, sobre pegar a estrada sem saber se teremos um apocalipse ou um paraíso nos esperando no final do percurso.