Imaginar uma autoridade religiosa cujo comportamento afronta o senso comum pode invocar na imaginação das pessoas uma porção de figuras, dado o inusitado que é: eu, particularmente, acabo me recordando de um padre de Pirangi, uma pequena cidade no interior de São Paulo (meu lar de infância), na qual o sacerdote usava aparatos da tecnologia como tablets para auxiliar na devida condução das missas. Claro que esse arrojo nem chega perto do que foi o famoso caso do “padre do balão”, quando em 2008 Adelir Antônio de Carli teve a ousada ideia de viagem utilizando balões com gás hélio, culminando em tragédia.
No entanto, em meados de 1951, uma das maiores lendas da história do cinema tinha como objeto de seu segundo trabalho uma espécie de “padre do balão”: trata-se de Flying Padre, dirigido pelo mestre Stanley Kubrick. Apesar de ser um trabalho menor dentro da filmografia de Kubrick como Laranja Mecânica e O Iluminado, o curta já apresenta algumas de suas características visuais, como a atenção meticulosa à composição dos planos.
A história apresenta dois dias na vida do padre Fred Stadtmuller, cuja paróquia no Novo México é tão grande que ele só consegue espalhar bondade e luz entre seu rebanho com a ajuda de um monoplano. O piloto sacerdotal é visto correndo de uma província para outra no comando de seu fiel “Espírito de São José”, nome dado ao seu avião.
Quais análises podemos fazer do curta de Stanley Kubrick?
O filme mostra um padre que se desdobra para atender sua comunidade, destacando sua devoção e sacrifício. Essa vertente antecipava algo marcante dentro da obra do diretor que é a sua adoração por personagens em situações extremas. Ao mesmo o assistencialismo do padre muito nos diz, numa mensagem absolutamente atemporal, a respeito do isolamento e como vamos nos conectar com pessoas em difícil acesso e/ou com poucos recursos. Vale observar como Kubrick enquadra o padre e a paisagem árida do Novo México, criando um contraste entre o humano e o ambiente.
No que tange a cinematografia, Flying Padre segue o padrão do cinema documental da época pelo tom jornalístico e a narração em off, que também possuía forte vertente de noticiar os espectadores a respeito de questões cotidianas.
Esse padre realmente existiu? Há alguma relação dessa produção com outras do diretor?
Embora Flying Padre pareça distante do restante da filmografia de Kubrick, ele já mostra traços do interesse do diretor por figuras isoladas e obsessivas, como HAL 9000 (2001: Uma Odisseia no Espaço), Jack Torrance (O Iluminado) e o próprio protagonista de Barry Lyndon. O avião como ferramenta para o bem, por sua vez, pode ser comparado à forma como Kubrick mais tarde abordaria o papel da tecnologia, muitas vezes de maneira ambígua (Dr. Fantástico, 2001).
Quanto ao sacerdote, é seguro dizer que ele realmente existiu. Nesse sentido, é de se elogiar ainda mais o trabalho de Stanley Kubrick, uma vez que não há maiores informações sobre o padre Fred Stadtmueller para além do que é possível tomarmos ciência através do curta-metragem.