Não me orgulho em dizer que virei fã de Bob Dylan por causa do filme “Watchmen”, de Zack Snyder. Na época, tinha acabado de ler os quadrinhos que já referenciavam o icônico compositor, e aquela abertura incrível – em um longa, no mínimo, questionável – me fez buscar mais sobre o artista. A partir daí, mergulhei nesse vasto universo que é acompanhar a vida e a carreira de um dos músicos mais enigmáticos da história. Ao longo dos anos, consumi obras marcantes sobre Dylan, como o documentário “No Direction Home” (Martin Scorsese) e o experimental “Não Estou Lá” (Todd Haynes), onde diferentes atores interpretam facetas distintas do cantor. Agora, em 2024, temos mais um filme tentando decifrar essa lenda: Um Completo Desconhecido, dirigido por James Mangold.
Diferente de seus antecessores, “Um Completo Desconhecido” segue uma estrutura mais convencional e de escopo reduzido. O roteiro acompanha o início da carreira de Dylan, interpretado por Timothée Chalamet, sua ascensão à fama e a controversa transição para a guitarra elétrica. O filme também destaca figuras importantes de sua trajetória, como suas relações amorosas com Sylvie Russo (Elle Fanning) e a cantora Joan Baez (Monica Barbaro), que protagonizam algumas das melhores cenas. Além delas, surgem mentores musicais como Pete Seeger (Edward Norton) e Johnny Cash (Boyd Holbrook), além de Woody Guthrie (Scoot McNairy), ídolo de Dylan, cuja relação com o cantor resulta em momentos emocionantes.

O enigma chamado Bob Dylan em ‘Um Completo Desconhecido’
O título “Um Completo Desconhecido” não poderia ser mais apropriado. Retirado da icônica “Like a Rolling Stone”, ele sintetiza perfeitamente a essência enigmática e mutável de Bob Dylan. Começando como um jovem folk, tornando-se a voz de uma geração traumatizada e, por fim, “traindo” o movimento ao se voltar para o rock e o blues, sua trajetória foi marcada por constantes reinvenções. No filme, grande parte das interações do protagonista com os outros personagens acontece através da admiração ou perplexidade deles diante de sua imprevisibilidade. Dylan nunca permanece no mesmo lugar, transitando entre os mundos dos outros sem jamais se prender a um só. Como um gênio difícil de lidar, ele frustra as expectativas daqueles que tentam enquadrá-lo, o que resulta em um retrato de alguém muitas vezes prepotente, egocêntrico e, em alguns momentos, um verdadeiro “boy lixo”. Ele consegue tirar do sério até mesmo o pacato Pete Seeger de Edward Norton.
Como fã que já conhecia bem a história do cantor, estava curioso para ver como o filme retrataria essa fase crucial de sua vida. E um dos pontos mais interessantes foi justamente a dinâmica com Sylvie e Joan Baez, cujas relações conturbadas com Dylan geram momentos intensos. Em uma das cenas iniciais, Dylan declara a Sylvie que “Picasso é superestimado” – uma fala que, além de demonstrar sua arrogância, serve como metáfora para sua própria arte. Assim como Picasso foi um dos precursores do cubismo, Dylan é um modernista das palavras, usando-as de maneira abstrata e fragmentada, deixando espaço para múltiplas interpretações. Essa abordagem é evidenciada em duas cenas onde Sylvie assiste a suas apresentações e consegue relacionar as letras das músicas diretamente com o que viveram juntos.

Como não poderia deixar de ser, a trilha sonora tem um papel fundamental no filme. Timothée Chalamet não apenas interpreta Dylan, mas também canta suas músicas – e, em certos momentos, até melhor do que o próprio Dylan (o que não é exatamente difícil). As canções são utilizadas de forma tradicional, tanto em performances que enaltecem suas letras quanto em cenas onde a música complementa perfeitamente a narrativa. Mais uma vez, a escrita de Dylan é um quadro a ser interpretado, funcionando muito bem em diversas situações.
No fim das contas, “Um Completo Desconhecido” é uma cinebiografia bastante convencional, sem a ousadia experimental de “Não Estou Lá”. James Mangold, que já dirigiu “Johnny & June” (Walk the Line), sobre Johnny Cash, entrega um filme competente, mas sem grande brilho, dentro do que se espera de sua filmografia. Timothée Chalamet, por sua vez, demonstra grande comprometimento com o papel, não apenas reproduzindo a voz, mas também os trejeitos e a postura de Dylan. O episódio da transição para a guitarra elétrica foi um dos momentos mais revolucionários da música e poderia ter sido tratado com mais impacto cinematográfico, mas, ainda assim, o longa consegue entreter e apresentar Dylan a um novo público. Se esse filme fizer mais pessoas embarcarem nessa jornada musical e se tornarem fãs, como aconteceu comigo anos atrás, já terá cumprido seu papel.