É até difícil colocar em palavras a experiência de assistir Planeta dos Abutres. Em uma cena emblemática, a personagem Úrsula presencia algo único — um processo de polinização, quase um ciclo de vida do planeta Vespa condensado em um único ser — e se perde no momento. Quando Sam, seu companheiro de viagem, pergunta o que a atrasou, nem ela sabe explicar. Foi apenas incrível.
É animador ver uma animação tão original no formato de série. Normalmente, obras fora do padrão, com ritmo lento, tom contemplativo e aspecto experimental, conseguem ser realizadas, no máximo, como filmes. Não é à toa que “Planeta dos Abutres” começou como um curta e, só depois, com o suporte da HBO Max, tornou-se uma série — sobrevivendo, inclusive, às mudanças da plataforma. Talvez por falta de um apelo comercial mais evidente, a animação não foi tão comentada quanto merecia e acabou cancelada. Mas é, sem dúvida, uma das melhores obras de ficção científica dos últimos tempos. O melhor é que, mesmo sendo diferente do mainstream, não ficou restrita ao circuito de festivais.
O Enredo de Planeta dos Abutres
A história começa em uma central espacial de cargas, onde dois trabalhadores discutem sobre o desaparecimento da nave cargueira Demeter, afirmando que a empresa não gastará recursos para salvar seus tripulantes. Embora esse tema não seja amplamente explorado, ele é um dos pontos centrais da trama, pois tudo o que se desenrola é consequência de uma lógica de economia de recursos acima da vida humana.
Após um acidente com a nave, os tripulantes são obrigados a fazer um pouso forçado em Vespa, o planeta mais próximo. Apesar de ter uma atmosfera e recursos naturais que tornam a sobrevivência humana possível, Vespa também abriga uma fauna e flora extremamente hostis. Assim, acompanhamos três núcleos distintos de sobreviventes:
Úrsula e Sam — ela, uma botânica fascinada por Vespa, observa o planeta como uma artista disposta a aprendê-lo; ele, um piloto prático e pragmático, busca apenas o que pode ser útil para sua sobrevivência; Azi e Levi — Azi, uma das trabalhadoras da nave, tenta sobreviver ao lado de Levi, um robô programado para tarefas repetitivas; e Kamen — após o acidente, ele é resgatado por uma criatura peculiar de Vespa, que se alimenta de pequenos herbívoros. Essa espécie possui habilidades de manipulação mental e, ao perceber a fragilidade emocional de Kamen — que ainda lida com o trauma e a culpa do acidente —, estabelece uma relação simbiótica perturbadora, misturando cuidado e parasitismo. A interação entre os dois bagunça as memórias de Kamen, tornando tênue a linha entre realidade e devaneio.
O objetivo dos personagens é sobreviver até encontrar um meio de deixar Vespa, vasculhando o que ainda pode ser aproveitado na Demeter. Embora a premissa seja relativamente simples e remeta a outras narrativas do gênero, “Planeta dos Abutres” se destaca na forma como tudo se desenrola. Os personagens são complexos e bem construídos, com diálogos autênticos e envolventes. A série utiliza bem seus episódios de 20 minutos para revelar histórias pregressas sem pressa, enquanto a trama progride no tempo certo. Mesmo com um grande número de personagens, todos são bem trabalhados, e seus conflitos e relações geram um forte senso de cumplicidade.
Isso confere à obra um tom realista e identificável, apesar de se passar em um tempo indeterminado no futuro e em um planeta alienígena. A sensação é de estar acompanhando experiências reais de pessoas comuns em situações extremas. Não é uma ficção científica em que apenas personagens extraordinários, movidos por uma força interior inabalável, têm espaço. Assim como Shinichiro Watanabe fez em “Cowboy Bebop”, aqui vemos um mundo extraterrestre sendo explorado por indivíduos com particularidades, mas essencialmente humanos.

Estética e Influências
Para quem, como eu, costuma pular a abertura, vale a pena segurá-la pelo menos no primeiro episódio. A série usa esse momento para complementar sua narrativa com um lirismo visual e sonoro que permeia toda a obra. Ainda assim, pode ser difícil entender tudo de imediato, pois somos lançados junto aos personagens no meio da história. O ritmo lento, a ambientação repleta de criaturas estranhas e o terror corporal causado por uma natureza tão bizarra podem dificultar a imersão, especialmente para quem não tem tanta familiaridade com o gênero. Mas, para aqueles que estiverem dispostos a uma experiência quase sinestésica, o resultado será fascinante.
A criação de Vespa é meticulosa e impressionante: um planeta diverso, com diferentes biomas, repleto de plantas, cavernas, criaturas aéreas e terrestres, fenômenos naturais e pragas que se propagam de maneiras bizarras. Cada episódio surpreende pela criatividade na construção desse ecossistema alienígena, que se torna quase um personagem por si só. Ele aterroriza pelo modo como se impõe aos humanos e impressiona pela capacidade de gerar vida — ou transformar criações artificiais em matéria orgânica. Assim como a natureza, Vespa não tem moral; apenas o instinto de absorver e transformar, integrando até mesmo seres de passagem ao seu ciclo vital.
As influências visuais são evidentes. A estética remete às artes de Moebius, enquanto a forma gosmenta dos seres e a interação encantadora e assustadora com os humanos lembram animes como “Akira” e os filmes do Studio Ghibli. A maneira poética como “Planeta dos Abutres” se desenvolve traz ecos de “Nausicaä do Vale do Vento”, de Hayao Miyazaki, que também nos leva a sentir empatia por criaturas cujo primeiro impulso seria repelir.
Um Final à Altura
E o final não decepciona. Para mim, termina lá no alto, atingindo a expectativa criada com a tensão crescente ao longo da narrativa. É um final agridoce, onde nem todos os personagens que gostamos se dão bem, e nem todos os que odiamos se dão mal. Mas há uma pontinha de esperança. Mesmo com uma brecha para continuação, é um encerramento que se sustenta por si só.
Enfim, só aconselho que todo mundo assista, pois essa série é genial. E espero que “Efeitos Colaterais”, nova produção animada do mesmo criador de “Planeta dos Abutres”, seja incrível também.